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Cultura Conto

Neo Vertumno

filho do mundo

23/05/2025 14h42 Atualizada há 4 semanas
Por: Leonardo Albuquerque
Neo Vertumno

Neo Vertumno

        Em meio ao clima seco; à falta de estrutura; ao clima quente e a brancos, negros e indígenas, nascera João Eduardo. Era branquinho e não chorava muito. Sua avó realizara o parto por si própria. Não fora difícil. Na verdade, sempre relembrava:
        - Foi como colher uma cenoura. – dizia orgulhosa.
        Sua família dera uma grande festa em homenagem ao seu nascimento, mesmo com o pouco que tinham. As batatas foram meio gratinadas numa fogueira simples que seu pai montara perto do curral vazio. Sua mãe cozera algumas leguminosas em sua imensa panela de barro, feita pela avó. Parentes e vizinhos vieram para prestigiar a festa. A avó coletara alguns baldes de água no profundo poço que seu pai havia cavado e preparou um bom suco de laranja para as visitas. Havia dois pés de laranja na frente da casa velha. Dois pés, aliás, que lutaram muito pela sobrevivência. Muito mesmo. Eram como um casal forte.
        Aos seis anos, João Eduardo - que já não tinha mais a pele tão branca, mas meio amarronzada e as bochechas rosadas, além dos cabelos loiros escuros e meio duros – brincava na frente da casa e no quintal também. Mexia na plantação de sua finada avó, que fora enterrada no fundo do quintal, bem pra lá da lavoura. Trepava nas árvores e ficava lá por horas e horas conversando consigo mesmo, ou será que era com as árvores? Abraçava as plantas e sempre se lembrava de regar todas bem cedo. Seus pais observavam de longe toda sua diversão, seu cuidado com as plantas, seu interesse em saber cuidar da plantação, assim como estranharam tudo o que aconteceu em seguida.
        Dormia com as galinhas, e até então era muito normal para todos, mas sempre acordava junto com todas. Além disso, gritava para anunciar a manhã, já com o milho pulando de seus dedos e sendo beliscado por montes das galináceas ao seu redor. Gritar e atirar o milho eram suas formas de prazer quando criança. Por vezes, tivera a sorte de arranjar dois ou três ovos no mesmo ninho.
        - Obrigado, dona galinha! – dizia feliz.
        Noites se passaram, e na pré-adolescência, no quarto de João reinara um cheiro estranho de celeiro. Sua mãe achara que fora o excesso de suor por conta da seca e do calor. Curiosamente, toda manhã, apareciam cogumelos plantados no colchão velho em que João dormia sobre a cama de madeira velha e meio comida. A mulher botava o garoto pra dormir em outro canto enquanto limpava tudo, mas não adiantava, os fungos tornavam a aparecer toda santa vez, e sempre ao redor de seu rebento, que, aliás, tinha agora um moreno um tantinho mais vermelho, os olhos verde escuro e sem brilho, e os cabelos ainda louros e duros como fibras. Quando beijava sua face, sentia umas poucas poeirinhas.
        O cheiro de celeiro impregnava o quarto sempre que o garoto se deitava. Comia maçãs, chupava mexericas e laranjas e depois recolhia as sementes e atirava tudo para além da lavoura. Não dava uma semana, lá estavam pés de maçã, de laranja, de mexerica. Seus pais não entendiam, mas agradeciam aos céus pelo presente. Sua mãe já não ligava para os fungos; na verdade, percebeu que os cogumelos que brotavam em sua cama eram saborosos. Então, preparava uma sopa com bastante cenoura e cebolas frescas quase todas as noites.
        Nas noites de outono, deitava o moleque na cama, espantava as galinhas que apareciam do nada e punha-se em sua própria cama. Porém, de manhã, encontrava seu rebento sendo carregado por formigas e mais formigas em direção ao formigueiro, e o pobre garoto dormia sossegado durante o trabalho coletivo. Estranhamente, na mesma estação, sua pele adquiriu uma tonalidade meio cor de abóbora.
        Por vezes, pegava o cavalo do vizinho e saía montado no danado, apesar dos trotes e das mordiscadas que levava dele no braço. Atraía pássaros com assobios leves e apaixonados e os tinha sobre seus ombros sempre que quisera. Por vezes, banhava-se nu com seus amigos nos lagos das regiões pouco montanhosas, e lá brotou um grande arrozal, para a felicidade dos pais e dos vizinhos. Seus cabelos ainda eram louros e duros e iam crescendo e ficando cada vez mais bonitos, mas seu cheiro de animal não saía. Isso começou a incomodá-lo depois de um tempo.
        Quando foi para a escola, era o primeiro da pequenina turma quando o assunto era geografia, biologia, qualquer coisa que fosse sobre cuidados com a natureza; por outro lado, não ia nada bem em matemática. E foi lá que arrumou sua primeira namoradinha. Era de uma beleza simples e morena, da cor da terra do quintal de sua casa e tinha as mãos tão delicadas quanto às flores que sua mãe cultivava. Mãos essas que ele queria segurar até chegar com ela no portãozinho de sua casa, onde a mãe dela recebia ambos com um sorriso bonito e enxugando as mãos no avental velho e rasgado. Para a alegria da simples moça, o menino, muito delicado como era, levava para ela sempre algo diferente, mas o presente mais sincero fora uma bela saca do arroz que brotara de seu banho no lago. Afinal, o pouco dinheiro que entrava em casa não dava para trazer muita comida para seus filhos pequenos. Já para sua amada, o primeiro presente foi uma maçã vermelha como o rosto dele quando a via.
        Certo dia, acordou mais cedo do que de costume, sentindo uma coceira insuportável em seus cabelos. Correu para fora, lá para o pasto, coçava e coçava mais a cabeleira loira e a espessura dos fios o incomodavam, até que acabou arrancando aos poucos alguns fios, que caíam no meio do gramado. Finalmente, a coceira cessou, e somente teve que arrancar poucos fios. Uma semana depois, lá estava um vasto trigal, para lágrimas e risos de seus pais, que agora podiam fazer farinha em casa, além de poder assar um pão para o café e ainda ajudar os vizinhos com os alimentos.
        Seu filho era uma benção.
        Aos quinze, já não podia mais brincar como gostaria; banhos nos lagos já não eram mais frequentes; a namoradinha virara amiga do coração, mas nunca deixara de ganhar uma maçã todos os dias. Passou a trabalhar na venda da cidadezinha mais próxima, pois precisava ajudar mais em casa já que sua mãe não enxergava tão bem como antes e seu pai estava com a coluna quase que em frangalhos. O bichinho vendia e vendia como ninguém. Sempre com as mais lindas verduras e frutas nas palmas das mãos.
        - Parece que brotam aí mesmo.
        - Quem me dera, senhora. – dizia feliz.
Sua utilidade era grande. Mas com isso, vieram mais coisas. A cidade grande o atentou. Seu chefe quis levá-lo pra conhecer o mundo de verdade. Ver mulheres de verdade; ver a tecnologia que fazia o homem viver por mais tempo; provar bebidas mais doces e saudáveis; deliciar-se com comidas mais chiques e bem preparadas; conhecer músicas animadas; conhecer gente real, além de ver pastos mais verdes crescerem bem diante dele.
        Chega de ser somente um pacato cidadão.
        A cidade estava para lá da plantação de sua avó. Para lá dos lagos de arrozais.
        João não queria, mas o mundo precisava de sua pessoa. O prazer de ver ‘algo novo’ encheu seus olhos. Antes que pudesse notar, já estava na cidade com seu molambo e cheirando o ar cinza, preto e branco da floresta densa de frio concreto.
        Lá fez dinheiro com seu chefe. Fez muito dinheiro. Conheceu as mulheres da vida e provou o veneno delas; experimentou da fumaça, das máquinas barulhentas e incessantes; bebeu biritas fortes que o endoidavam nas noites frias, quietas ou barulhentas; comeu pratos caros em lugares caros; acabou em boates, festas, bailes e mais bebidas. Viu gente branca, negra, indígena, mas por mais estranho que fosse, eram todos da mesma cor – todos cinzas. Cinzentos. Surgia cada vez mais dinheiro em negócio sujo. Até que bebeu da própria fonte. Viciou-se na água que bebia e passou a fumar. Já era um cinzento da vez. Sua vida passava correndo daqueles tempos em diante.
        Seu moreno cor de abóbora já não era cor de abóbora, mas de batata, só que falsa. Ficou branco. Até que ficou cinza. Insistia que era moreno, mas não era. E se era, era um moreno fraco demais. Era um moreno não bonito.
        Um dia, entre a fumaça e o frio, viu árvores cinzas e sentiu um leve aperto.
    Pela janela de seu apartamento, viu pássaros raros que choravam. Outros que imitavam as pessoas cinzentas em seus passos. Outras que brigavam por um pedaço mísero de alimento. Outras que levavam chutes dos cinzentos.
    Tudo foi muito repentino. A realidade arrancou sua pele. Quis voltar. Quis muito voltar, mas o chefe não deixou.
    Quando voltasse, tudo estaria destruído. Nada seria mais a mesma coisa. O cinza se espalhava, era uma doença sem cura. Era um mal necessário. Tolo era o sujeito que veio de molambo.
    - Quando o cinza chega, toma conta de tudo. – ria com seu bafo de bebida.
    Fugiu desesperado, deixando rastros de pó por onde passava. O cheiro estranho ficou extremamente insuportável. Na rua, os bichos passavam perto. O cinza de moreno não bonito perdeu o controle.
    Atravessou o concreto escuro, mas o caminhão não parou. Virou pó na colisão. Pó esse que se espalhou pelos céus, sem chamar a atenção de ninguém.
    Tentou voltar pra casa, mas se perdeu no cinza esbranquiçado e escuro do céu. Tentou salvar as árvores tristes, mas...
    Somente restou o passado germinado, mas não eterno.

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Alex Cavalcanti Há 4 semanas São Paulo-SPParabéns!!!!!
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