Entre toldos
Delicioso era o burburinho do encontro de jovens e maduras vozes justo naquele sábado no Palácio. Não posso mentir, o lugar não tinha mudado tanto, a região era ainda era agradável mesmo com um pouco mais de fluxo nas ruas devido aos comércios, e o público parecia ter se reinventado, havia prédios novos e uns dois ou três antigos abandonados. O Palácio, outrora apenas mais um bar entre tantos outros na cidade, estava renovado, badalado - como dizem -, e até mais aconchegante. Nunca teve portas e as paredes antigamente descascavam devido à umidade; os toldos agora eram vermelhos que chamavam e muito a atenção num dia claro de verão; havia agora um mezanino, que dava um ar mais intimista, muito acabamento em madeira; o balcão, antes de madeira repintada, agora era de madeira maciça, com um espelho atrás, que caía por trás de uma bela prateleira de bebidas e de uma imensa máquina de café. Adultos e idosos frequentavam aquele lugar vintage que exalava história e permitia momentos serem desenhados.
Foi ali, entre o cheiro do cigarro dos outros e rodando a boca de um copo de suco, na mesa nove, que ficava do lado do único e mediano degrau que dava para a rua, que avistei Tadeu chegar de mais um dia de aula para mais um encontro nosso antes de ele ir correndo pra casa. Tomava um suco rapidamente, sempre olhando para os lados, com medo que algum conhecido nos visse e contasse a seus pais. Sua igreja não tolerava, e sua família - mesmo a par - faziam vista grossa e - segundo ele - faziam rezas para que ele “se curasse” das divas, das músicas eletrônicas e da mania de ir ao cabeleireiro todo final de semana. Seu bairro era sua zona de conforto, mas onde eu estava proibido de passar perto, com medo que seu armário fosse escancarado pelo fuxiqueiros.
Nestas vagas lembranças vi Mira, a dona do salão da frente, voltando do almoço, baixa, de cabelo preso, dentes grandes, de grandes óculos escuros, o celular no ouvido esquerdo, a carteira na mão direita, à altura dos seios, cercada por unhas postiças vermelhas que combinavam com o vestido que mais parecia uma releitura à bandeira do Canadá, e seu famoso tamanco de três dedos de altura. Famosa na região pelo salão já de história, mas muito moderno. Vira e mexe do lado de fora, com o celular na orelha, a acenar e mandar beijos para quem passasse na rua, em especial as idosas, que eram suas mais fiéis clientes. Podia-se ouvir o furdúncio no final da tarde, entre um cafezinho, um comentário sobre a novela e uma fofoca sobre algum vizinho. Sua língua era afiada e discretamente nada escapava de sua vista, nem mesmo o beijo apaixonado que dei em Tadeu, que não tardou a pegar sua mochila e correr toda vez que via Mira na calçada. Aos poucos a igreja ia atraindo-o de volta, fazendo o pecado pesar mais do que minha poesias. E apesar de nunca termos trocado uma palavra, eu era um cliente assíduo, conhecido dos inúmeros garçons que por lá já tinham passado, e, com isso, alvo fácil dos comentários de sua mira. Talvez eu fosse o ‘mocinho ali do café’, ‘aquele que não tem vergonha de beijar em público’, ‘aquele que tá sempre aí’.
Escondeu-se então do sol de duas da tarde por debaixo do toldo e deixou-se ser engolida pelo escudo do salão naquela tarde quente, o que me lembrou de ver as horas e trocar o suco de tamarindo já aguado pelo gelo derretido. “Será que…?” interrompido pela freada de um carro velho. O motorista, tentando disfarçar o celular na mão esquerda, riu-se e pediu desculpas aos que prestavam atenção. Parou os verdes olhos em mim por um instante e ficou sem graça ao me ver rindo e balançando a cabeça. Não pelo incidente, mas por seu carro velho ter-me feito lembrar de João, que eu tinha conhecido pela internet. Se a memória não me falhava, eu o tinha trazido no Palácio umas duas vezes. Tinha muito o que fazer com a mãe internada, o irmão desempregado e o pai que em nada ajudava, principalmente por viver em outra cidade. Tinha um sorriso de garoto e algumas olheiras que provavam irrefutavelmente sua exaustão, mas também um beijo firme que somente terminava quando me deixava na porta de casa, já de madrugada, com ambos momentaneamente satisfeitos. Foi num dos nossos almoços que ouvi uma risadinha do outro lado da rua, fingindo não saber do que se tratava. Porém, infelizmente, não demorou para as coisas ficarem ainda mais graves e seu irmão acabar colocando sua família em perigo numa dívida de jogo. A parte que eu sentia mais falta nas caronas eram os beijos. E ainda assim, eu insistia nas ligações e deixava uma cadeira reservada para ele no Palácio. Na segunda vez, reparei uma brisa de fumaça de cigarro saindo debaixo do toldo do salão, e uma figura discretamente desviava o olhar e se escondida puxando o vestido para não pisá-lo logo ao entrar.
Olhei para o final da rua e chequei minhas mensagens, mas fui interrompido por um ‘Parabéns pra você’ que me assustou de relance, mas eu acompanhei timidamente, sorrindo para as estripulias de uma pequena que aparentemente era parente do engravatado, um suposto chefe de equipe comemorando com seus funcionários que esperançavam o mínimo de chance de subir na vida, assim como esperancei, num mesmo aniversário, aqui no Palácio, mas sem o bolo, o mínimo de atenção de Breno, que era mais novo e atlético, e também já era pai de uma pequena serelepe que amava pudim e mostrava um janelinha ao sorrir. Havia se separado por uma crise de identidade. Ele, que vinha de uma família tão conservadora, tinha vontade de beijar outro cara, de sentir como era ter uma barba roçando em sua boca. Poucas vezes pude matar sua vontade, pois a culpa ou o seu retrato vivo o traziam abruptamente de volta à realidade. “Calma! Calma!” - dizia ele sempre jogando o olhar fechado para o alto quando o coração acelerava demais. Dificilmente conseguíamos ficar sozinhos e nossas conversas duravam horas acompanhadas de uma quatro ou cinco cervejas, mas com o passar do tempo ficou nítido que não passavam de debates que eram, uma vez ou outra, interrompidos pela mãe da menina. E certo tempo depois, voltou a morar com ela para a felicidade da criança. Umas duas vezes marquei com ele, mas nenhuma mais o vi. A cadeira que ficava de costas para o balcão - a que ele mais gostava - agora ficava vazia, os cafés eram solitários e dicas de investimento deixaram de aparecer em meu algoritmo. Por outro lado - ou do outro lado -, Mira mostrou-se mais presente ao movimento da rua. Entre um cigarro e outro com o toldo sempre baixo, gritava algumas ordens lá para dentro, disfarçava, se desfazia da bituca e arrastava o vestido porta adentro soltando a fumaça. “Esfriou, galera! Tô sentindo!” - eu a ouvi dizer certa vez. E aqui voltei outras vezes com quatro ou cinco rapazes, cada qual com sua peculiaridade, mas mal me lembrava do nome de dois.
Quando me dei conta duas horas tinham se passado e o entardecer me lembrava que ainda precisava passar no mercado antes de voltar para casa. O salão ainda fervia, toldo levantado, e Mira era vista lá no fundo, gesticulando ao contar uma história. Ora ouvia-se risadas, ora vozerio. Olhei o relógio novamente e concluí que ele não viria mais. Chamei então um dos meninos que olhava o movimento da calçada.
- Na hora de fechar deixa a chave com o Celso e pede pra alguém jogar uma água nesse toldo amanhã, faz favor.
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